Quando se fala em dançar, as pessoas pensam logo em dança de salão ou em colocar malhas de balé e fazer passos mirabolantes. É difícil pensar em uma dança que vá além de padrões estéticos e, ainda mais improvável conceber uma dança que possa induzir modificações existenciais.
Pois bem, essa é a proposta inovadora da Biodanza.
Ao criar esse sistema, Rolando Toro, um antropólogo e psicólogo chileno, pesquisava formas de humanizar a medicina e de criar sistemas promotores de saúde.
Através de seus estudos antropológicos se deu conta que a dança sempre foi usada desde tempos remotos como instrumento de vinculação e comunicação, expressando com profundidade conteúdos emocionais humanos. Veículo para gerar comunicação e unir membros do grupo, estabelecer ritos de passagem e celebrações, a dança pode evocar e trasmitir o que sentimos de forma profunda e reveladora.
O movimento de uma pessoa expressa sua história que fica impressa nos músculos, na postura, na forma de se movimentar pelo espaço, assim como na forma de se relacionar com o outro e com seu entorno. Mas, ao mesmo tempo que revela, também tem o poder de provocar transformações.
A dança que Rolando buscou foi esse movimento pleno de sentido, onde cada participante busca se movimentar a partir do que sente e não do que acha que os outros esperam dele ou do que julguem ser correto. O simples fato de alcançar essa coerência é por si só curativo, pois a possibilidade de atuar com fidelidade aos próprios sentimentos pode provocar mudanças profundas na vida de uma pessoa. A idéia é que essa coerência possa se incorporar e ampliar possibilidades em nossa existência. Isso é alcançado gradualmente com o processo de aulas regulares semanais.
O objetivo primeiro da Biodanza é a busca da integração:
Nível existencial: entre sentir, pensar e agir, buscando coerência e espontaneidade nas ações cotidianas.
Nível fisiológico: entre as partes do corpo e no resgate padrões orgânicos de funcionamento, isso quer dizer, dissolver tensões, regular ritmos, integrar emoções. Respeitar, portanto, pautas básicas do organismo, dissolvendo o stress e evitando o mau funcionamento fisiológico gerado por um estilo de vida acelerado.
Nível existencial: integração entre o indivíduo e seu grupo, resgatando a possibilidade de vinculação e cuidado e dissolvendo padrões competitivos e defensivos de comunicação.
Biodanza não significa simplesmente dançar, mas deixar que meu movimento expresse sua verdade. Esse movimento é o que leva à vivência. Vivenciar significa estar em contato com tudo aquilo que se passa nesse instante aqui e agora: o que sinto, o que penso e como quero agir. Esse contato com o tempo presente me dá condições de saber minhas próprias necessidades: conhecê-las e agir para atendê-las. Um processo aparentemente simples, mas muitas vezes perdido com os padrões educativos e os ritmos que são impostos com a vida urbana acelerada.
A Biodanza é um sistema extremamente amplo para explicar em poucas linhas, mas resumidamente propomos que através da dança, dos registros do corpo, do sentir, possamos gerar integração: sentir o que estou sentindo, comunicar com o outro, me movimentar na existência para atender aquilo que preciso respeitando os ciclos da vida. Somente meu corpo e meu movimento pode abarcar essa profundidade, pois a palavra falha, esconde e escapa. Por isso, usamos o movimento no caminho da integração.
Ficam sempre muitas perguntas que podem ser melhor respondidas na experiência em si de uma aula de Biodanza e seus efeitos.
Potencial Genético e Linhas de Vivência
Segundo o modelo teórico da Biodanza, o indivíduo nasce com um potencial genético (uma série infinita de disposições) que pode ou não se desenvolver dependendo da ecologia que o circunda.
A expressão desse potencial genético se dá através de cinco canais que denominamos linhas de vivência: vitalidade, sexualidade, criatividade, afetividade e transcendência. O desenvolvimento das linhas de vivência é influenciado por fatores ambientais – os chamados ecofatores – que a pessoa encontra durante sua vida: geográficos, sócio-econômicos e, principalmente, os ecofatores humanos, os quais assumem um papel central nesse desenvolvimento – através dos encontros, o humano se constrói, nutrindo e ampliando suas fronteiras.
São justamente os primeiros contatos com o mundo (protovivências), que mais marcam a história individual. As protovivências são as vivências que envolvem os primeiros seis meses de vida, quando o bebê começa a experimentar o mundo pela primeira vez. Os pais, ou seus substitutos, e sua atitude perante essas primeiras experiências humanas influenciam aspectos pessoais como a capacidade de vínculo, a capacidade de expressão, a auto estima, o sentimento de segurança, a capacidade de desfrutar, em resumo, o desenvolvimento de suas linhas de vivência.
Felizmente, o potencial genético não entra em estagnação, pelo contrário, ao estar em constante movimento, a aprendizagem se estende por toda a vida. Todo ser humano tende ao crescimento – movimento esse citado por diversos autores em psicologia, biologia e outras ciências da vida, entre eles Rogers, Maturana, Berne, Steiner –, o qual dependerá especialmente da influência dos ecofatores humanos positivos para que possa se expandir em todo seu esplendor.
A Biodanza, através da vivência (conjunto música, dança e movimento que nos enraíza no momento presente), oferece a oportunidade de desenvolver plenamente esses potenciais e expressão da identidade no mundo. Através de exercícios específicos, de músicas deflagradoras e da interação coletiva, criamos um ambiente protegido, de afeto para que esse desenvolvimento se dê, expandindo as linhas de vivencia de cada pessoa, as quais são:
Vitalidade
A vitalidade se caracteriza em termos gerais por harmonia orgânica e um bom nível de saúde. Do ponto de vista existencial, vitalidade é possuir fortes motivações para viver e possuir energia disponível para a ação (ímpeto vital). Sentimentos de alegria interior, entusiasmo, plenitude existencial são características de uma pessoa vital.
A vitalidade está vinculada ao humor endógeno (estados de ânimo, eufórico ou depressivo). A integração das cinco linhas de vivência reforça a vitalidade devido à elevação global das motivações para viver.
O amor à natureza, os jogos e o vínculo com os próprios instintos são características do “homem ecológico” – homem integrado a si mesmo, às pessoas e ao universo. A qualidade da vida não provém do êxito social ou econômico, mas sim dos vínculos profundos de conexão com a vida.
Sexualidade
Em seu sentido mais amplo, a sexualidade é o conjunto de características particulares que distinguem física e emocionalmente o macho da fêmea, tanto nos animais como nos vegetais. Isto significa que na sexualidade participam componentes genéticos diferentes (exceto nas flores hermafroditas). É a diferenciação sexual que permite o processo de fecundação. A sexualidade possui, portanto, um papel basilar na reprodução das espécies e na continuidade da vida.
Sexualidade e vida estão indissoluvelmente unidas. O desejo sexual constitui uma forte motivação para viver. No ser humano, a sexualidade esta associada ao prazer, possivelmente como um recurso da natureza para assegurar a continuidade da espécie.
A sexualidade humana adquire expressões emocionais, afetivas e de refinamento de grande importância, é um modo de ser e de crescer, no qual a sensualidade desempenha um papel importante. A sensualidade é a sensibilidade global aos estímulos de prazer e não só ao estímulo genital. A pessoa sensual tem uma grande receptividade ao contato corporal. Sensualidade é sentir prazer pelos alimentos, pelo banho, pela brisa a e pela chuva, pelas carícias e beijos.
Criatividade
Criatividade é uma atividade que forma parte integrante da transformação cósmica, um caminho do Caos a ordem. A atividade criativa organiza uma linguagem única e partir da vivência. O ser humano se manifesta como impulso de inovação frente à realidade.
A obra de criação é sempre o expressivo resultado do ato de viver. A criação é uma função de auto transcendência, uma extensão do processo de vida. A forma mais elevada de expressão da criatividade é a criatividade existencial que se traduz nos atos do cotidiano.
Afetividade
Afetividade é um estado de afinidade profunda para com os seres, capaz de originar sentimentos de amor, amizade, altruísmo, maternidade, paternidade, companheirismo. No entanto, sentimentos opostos como a ira, os ciúmes, a insegurança, a inveja, podem ser considerados integrantes do complexo fenômeno da afetividade.
Através da afetividade nos identificamos com outras pessoas e somos capazes de compreendê-las, amá-las e protegê-las, mas também de recusá-las e agredi-las. Segundo Ortega e Gasset, a afetividade abarca qualquer das paixões do ânimo, em especial o amor, o carinho e o ódio.
A linha de Afetividade tem em Biodanza sua expressão privilegiada no amor, manifestada através dos sentimentos de empatia, solidariedade e comunhão com a espécie. A afetividade pode ter a dimensão do “amor diferenciado”, dirigido a uma só pessoa, e a do “amor indiferenciado”, dirigido à humanidade. As formas patológicas da afetividade se expressam na destrutividade, a discriminação social, o racismo, a injustiça e os impulsos autodestrutivos.
De modo diferente das vivências (que são estados passageiros “aqui e agora”), a afetividade é complexa, com duração no tempo (recordações), participação da consciência e representação simbólica.
A afetividade é um estado evolutivo superior que não vai necessariamente unido à sensibilidade nem à inteligência. O sentimento de amor à humanidade, expressado em ações, está unido ao processo evolutivo da espécie. Pessoas inteligentes e sensíveis, mas sem capacidade de amor são capazes de inconcebíveis níveis de violência.
Transcendência
Em Biodanza o conceito de transcendência consiste na função natural do ser humano de vinculação essencial com tudo o que existe: seres humanos, animais, vegetais, minerais; em síntese, com a totalidade cósmica.
Em Biodanza, o conceito de transcendência se refere a superar a força do Ego e ir para além da autopercepção, para identificar-se com a unidade da natureza e com a essência das pessoas. Transcender é superar um limite. Quem não pode abandonar a consciência de si mesmo, não tem a possibilidade de ingressar à experiência transcendente.